"Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela
inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para
guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão
pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se
torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.
E não me sinto bem. Experimente:
se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um
constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente
locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas
que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho
que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque
até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.
Metade das coisas que eu faria se
eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu
terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e
confiaria o futuro ao futuro.
"Se eu fosse eu" parece
representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no
desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras
chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo.
Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela
que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase
de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de
algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de
pudor que se tem diante do que é grande demais."
Clarice Lispector
Extraído do livro A Descoberta do Mundo
Puxa Gustavo escolheste bem.
ResponderExcluirQuantas vezes num dia fugimos de ser nós mesmos?
Cada um que lê Clarice tira uma lição para o própria vida.
Grande abraço!